sábado, 30 de agosto de 2008

Prefácio

Por Vera Maria Tietzmann Silva
Que ingredientes são necessários para que se tenha um bom romance? Receitas não garantem nada, pois o essencial não está nos ingredientes usados, mas no talento do romancista que os combina e condimenta, e todos sabemos que o talento é algo fluido, impalpável, centelha interna que nenhuma escola é capaz de ensinar. Contudo, há elementos que costumam estar presentes nas ficções bem-sucedidas, aquelas que conseguem prender a atenção do leitor e, mais que isso, conseguem comovê-lo. Duas mulheres, quatro amores e uma guerra civil, romance de estréia de Jailton Batista, tem esse perfil.
Antes de mais nada, esta narrativa não se restringe ao apenas verossímil, ou seja, ao acreditável, mas ela impressiona o leitor como verdadeira, como real. Isso se deve ao fato de ela efetivamente calcar-se em fatos históricos – as guerras civis angolanas –, em testemunhos de atores desses conflitos, em depoimentos colhidos pelo romancista durante sua estada em Angola. Mas um romance não é uma reportagem. Ainda que o autor tenha experiência no jornalismo em seu currículo, sua narrativa apresenta nítidos contornos ficcionais, distancia-se do factual e alcança uma dimensão mais ampla e universalizante, própria da literatura, o que se deve ao modo como esta narrativa se constrói, partindo de elementos tomados à realidade.
Um dos ingredientes-chave para a eficácia de um texto de ficção é a escolha do foco narrativo, e nisso o autor foi muito feliz. Quem conta a história? Em primeiro lugar, Jailton Batista opta pela presentividade, isto é, por narrar as ações valendo-se do tempo presente dos verbos, inserindo, aqui e ali, ocasionais incursões no passado de alguns personagens e algumas brevíssimas alusões a eventos futuros (flashbacks e flashforwards). Esse modo de narrar dá ao leitor a ilusão de estar também ele no centro dos acontecimentos, ainda que tendo a incômoda sensação de não poder interferir no curso da história (isso é dado pelos flashforwards, que, antecipando o desenrolar da trama, eliminam a surpresa e o suspense).
A voz que narra vem de uma terceira pessoa, mas não se trata de mero espectador dos acontecimentos, tampouco de um narrador onisciente, espécie de deus que tudo sabe e tudo vê. Essa voz tem a particularidade de assumir a perspectiva da protagonista, a jovem noiva em viagem, de manter-se aderida à sua consciência, partilhando seus sentimentos e expectativas. Mas, ao mesmo tempo, a voz narrativa, à maneira de Machado de Assis, a todo momento interpela o leitor, provoca-o a opinar, a posicionar-se diante dos eventos ou, simplesmente, a se comover com os padecimentos de Esperança, a protagonista do romance.
O cenário são as selvas, estradas e acampamentos militares africanos; o tempo é a segunda metade do século XX; a situação é a das guerras civis em Angola; os personagens principais são mulheres feitas prisioneiras por um dos exércitos. O autor, ao escolher tal motivo para sua ficção, opta por rejeitar o óbvio, que seria o viés ideológico, e prefere assestar suas lentes analíticas sobre o aspecto humano da guerra, igualmente lamentável em qualquer das frentes de batalha. Jailton Batista não toma partido. Não defende uma causa política, não prega uma ideologia, e, assim fazendo, ressalta o absurdo de uma guerra fratricida – esta ou qualquer outra, em qualquer país. Dessa sua escolha decorre a exemplaridade do drama narrado. Aliás, o autor teve o cuidado de diminuir ao máximo os indicativos de cor local, como o uso de termos dialetais, a descrição da paisagem natural e as características raciais dos personagens envolvidos. Tampouco acolhe a perspectiva ufanista dos comandantes, preferindo a dos personagens duplamente oprimidos, Esperança e Fatu, que, além de mulheres, são prisioneiras.
Esses elementos, por si mesmos já dramáticos, ganham contornos mais densos nas cenas iniciais do romance, pela utilização que o autor faz de alguns recursos simbólicos. É com esse artifício de construção que a narrativa afasta-se definitivamente de qualquer conotação jornalística e ganha a dimensão literária. Vejamos brevemente em que consistem esses recursos.
A situação inicial é sempre um ponto altamente estratégico numa narrativa e dela muitas vezes depende a decisão do leitor em interromper ou prosseguir na leitura. Jailton Batista inicia seu romance com uma viagem. Não uma viagem qualquer, mas uma perigosa travessia por zonas de conflito e terrenos minados, num veículo precário que leva inicialmente quatro pessoas, três homens e uma mulher. Esta, uma jovem noiva a caminho de seu casamento. A certa altura, um quinto personagem integra-se ao grupo, um homem que vai assistir ao funeral de um tio. Uma emboscada põe fim à viagem, a moça é levada como prisioneira e os quatro homens são incinerados, transformando-se em irreconhecíveis despojos. Oficialmente, a bela noiva é tida como morta, pranteada e enterrada pela família.
Nessa síntese dos episódios iniciais de Duas mulheres... nota-se a presença dos seguintes elementos simbólicos: a viagem; a noiva e o pretendido casamento; o companheiro de viagem e o aguardado funeral; a troca de posições e a conseqüente confusão de identidade entre ambos. Esses elementos vinculam-se, direta ou indiretamente, a ritos de passagem.
Num sentido amplo, os ritos de passagem, ou rituais de iniciação, podem ser divididos em dois grandes grupos: os ritos da puberdade, que preparam o neófito para o exercício da sexualidade e para a vida e o amor; e os relacionados ao luto, que o preparam para o enfrentamento da dor, das perdas e da morte. Casamento e funeral são as cerimônias culminantes desses dois tipos de rituais. Esperança, a noiva quase freira, ajusta-se à perfeição ao papel de protagonista de um ritual da puberdade: pureza, inocência, beleza e confiança no futuro confirmam-se em seu nome reiterado, numa homenagem a duas mulheres homônimas da família. O inesperado companheiro de viagem, ao contrário dela, não é nomeado, é apenas o Homem do Funeral, e isso também é simbólico.
Há muitas histórias folclóricas de diversos países em que surge de repente esse outro, que pode ter um perfil benevolente ou atemorizador. Ele tanto pode ajudar o protagonista em sua viagem iniciática, como se vê, por exemplo, em “A princesa enfeitiçada”, dos Irmãos Grimm, ou em “O companheiro de viagem”, de Andersen. São mortos que voltam à vida para retribuir o bem recebido do herói. Mas esse estranho personagem também pode ser o arauto da morte, o Doppelgänger das histórias alemãs. Ele constitui uma das muitas manifestações do tema do duplo em literatura e, como tal, guarda uma relação simétrica com o protagonista. Parece ser este o caso de Esperança e do Homem do Funeral. Vejamos.
O objetivo que eles têm é oposto e, por isso mesmo, simétrico, já que se referem às duas modalidades iniciáticas principais, o casamento e o enterro. O comportamento de ambos também se apresenta paralelo e invertido. Mais que isso, contrário à expectativa, pois a noiva mostra-se discreta, e o homem de luto, falastrão. Ela é jovem, enquanto ele é vivido. A troca de lugares entre os dois se faz dentro do jipe, quando ele, valendo-se de sua situação social de macho mais velho e chefe de família, empurra a moça para o incômodo lugar central do banco traseiro e se acomoda junto à janela. Curiosamente, é essa atitude autoritária que vai garantir a troca seguinte, quando a bala que deveria matá-la acerta no homem. A mão do destino troca os lugares, mas não ameniza a sina de Esperança, cujo nome, daí para frente, vai adquirir um matiz irônico.
As múltiplas simetrias que podem ser traçadas entre a jovem e o seu companheiro de viagem apontam para oposições, que logo se convertem em equivalências: a viagem que a levaria para o amor faz com que ela conheça a morte. A viagem inicial de núpcias, com destino certo, transforma-se, para a noiva convertida em prisioneira, numa viagem labiríntica, sem rotas e sem prazos.
Se casamento e funeral se equivalem, se a viagem se faz com ou sem rota marcada, se o duplo nome de “esperança” não é capaz de livrar a heroína do sofrimento, o leitor pode concluir que igualmente estúpida, incompreensível e paradoxal é a guerra, sobretudo quando travada entre irmãos, a pretexto de nebulosas ideologias. Sem dúvida, a soma desses ingredientes narrativos e a força expressiva da linguagem de Jailton Batista fazem deste Duas mulheres, quatro amores e uma guerra civil um romance promissor, que merece ser lido tanto no Brasil como em Angola.

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